Sófocles |
Édipo rei, no seu tempo de fausto |
Um casal grego |
(*) era crença entre os gregos antigo que a alma dos mortos atravessava uma barca, conduzida por Caronte, um barqueiro mal-humorado, a quem convinha agradar fazendo com que se colocasse uma moeda na boca ou na testa do morto. Chegando às margens da mansão do Hades, onde os mortos se concentravam, havia na sua frente o cão Cérbero, que deixava a alma entrar, mas jamais sair.
Logo que chegam a Tebas, as duas irmãs tomam conhecimento do destino infausto dos irmãos como também do édito de Creonte. Desta vez é Antígona quem se indigna. Não poderiam elas, como as últimas familiares restantes do morto, deixar de cumprir com os obrigatórios ritos consumados. Ismena, porém, acha aquilo temerário. Lembra a Antígona que elas descendem de uma dinastia amaldiçoada, onde todo os antepassados ou próximos tiveram morte horrível (Laio, o avô delas, foi morto pelo próprio filho Édipo, que depois arrancou os próprios olhos; Jocasta, simultaneamente, a mãe e avó delas, matou-se, e seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, foram-se na voragem do fratricídio). Quem sabe seria melhor acatar as determinações do novo rei, o tio delas? Afinal, pondera, elas são mulheres e ninguém iria cobrar-lhes atitudes viris e temerárias, tal como desafiar a autoridade de Creonte. Antígona, porém, desprezou-a. Para ela, a irmã era covarde, incapaz de sensibilizar-se com as responsabilidades da casta nobre, a que por sangue pertenciam. Na calada da noite, contornando as sentinelas que vigiavam o irmão defunto, ela conseguiu prestar-lhe as homenagens, fazendo as libações e jogando um pouco de terra sobre os seus restos.
Quando um mensageiro traz-lhe a notícia do desrespeito às suas ordens, Creonte, tomado de raiva, acreditou, num primeiro momento, que aquilo devia-se a uma manobra de "cidadãos descontes" que "murmuravam e abanavam a cabeça às escondidas, não conservando dóceis, como deviam, o pescoço sob o jugo", teriam assalariado alguém para praticar aquele ato de provocação ao novo governo.
Um dama da nobreza grega |
Tudo indica que Creonte passa a ver na eliminação da filha de Édipo (a sentença também atinge a inocente Ismena) uma maneira de despoluir o reino de Tebas dos derradeiros descendentes incestuosos de Laio, e também evitar que Herão, o seu filho sobrevivente, contraia núpcias com Antígona, sua noiva prometida. O filho, por sua vez, se horroriza com a intransigência do pai. Acusa-o abertamente de tirano ("a cidade não pertence a um homem só"), dizendo-lhe que por toda a cidade o gesto de Antígona, tentando enterrar o irmão, é entendido como um gesto nobre. Mas Creonte o repreende, acusando de obedecer a uma mulher ("caráter vil, às ordens de uma mulher"), Herão, em fúria, decepcionado, atendendo mais aos reclamos de Afrodite, a deusa do amor, do que os deuses familiares, rompe com o pai.
Tirésias, o celebrado adivinho que era cego, vem alertar Creonte dos malefícios da sua atitude. Tendo escutado o pio das aves e interpretado os agouros (a gordura dos pássaros sacrificados não derretera), concluiu ele que "a cidade sofre por tua culpa"..."por lares santos terem sido profanados". Apelou então ao rei que seguisse a rota da prudência. Este, possesso, acusa o mago de interesseiro ("toda a gentalha dos adivinhos é ávida de dinheiro"), enquanto o solene cego responde-lhe que ele está "completamente infectado" pela falta de juízo. Previu então, ao ir se retirando da audiência, que uma grande desgraça estava prestes a abater-se sobre a casa do rei. Novamente só, assustado com as palavras certeiras do profeta, Creonte entregou-se à dúvidas. Atormentava-o agora à solidão do poder. Ninguém mais o apoiava. Quem sabe se haveria ainda um tempo para a remissão? Chama então os guardas e põe-se a caminho. Quer ir libertar Antígona.
O guerreiro com elmo, orgulho da raça |
"Levai daqui o louco, que, sem querer, filho te matou e também a ti, esposa! Ai, infeliz de mim! Não sei para qual devo olhar, nem onde me apoiarei; porque estão invertidas todas as coisas que podiam servir-me de amparo: sobre a minha cabeça desabou um insuportável destino!."
Portanto, o extraordinário drama abarca também uma desavença intradinástica, onde a velha estirpe, representada pelo sangue contaminado de Antígona, luta para salvar sua honra de uma família decadente, enquanto uma nova estirpe, que se imagina ainda não poluída, tenta afirmar-se como sucessora legítima da Casa dos Labdácidas. Ambos seriam pois, faces diferentes de uma exigência genética. Uma inteiramente infectada, outra tentando fugir ao contágio. | É corrente entre os estudiosos das tragédias gregas que elas serviram, antes de ser um entretenimento, como um estímulo a grandes discussões jurídicas, políticas, filosóficas e existenciais da sociedade grega e, porque não dizer, da humanidade. Antígona é, nesse sentido, uma das que mais longamente prestou-se às mais diversas interpretações políticas e literárias. O filósofo Hegel, por exemplo, considerou-a, longe de ser apenas um enfrentamento entre dois teimosos de cabeça quente, como um modelo do choque existente entre os interesses do Estado representado pelo rei Creonte, frente às Leis Não Escritas, a dikê, a ordem natural e os direitos familiares invocados pela princesa tebana. O crítico H.D.F.Kitto (A Tragédia Grega, Coimbra, 1972), por sua vez, entendeu que, entre as duas fortes personagens que a dominam, ela é a tragédia de Creonte. A filha de Édipo, atormentada pela crescente infelicidade da sua família, talvez estivesse, ao desafiar a lei, em busca de uma morte gloriosa, solene, auto-sacrificando-se no altar da sua raça em extinção. Sobre ele, porém, é que concentraram-se as responsabilidades ("Ó anciãos, todos vós sois como arqueiros que atiram para este homem como sobre um alvo"). Apesar da peça chamar-se "Antígona", é ele, Creonte, quem domina o cenário. É em torno da sua decisão que é tecida toda a rede de infelicidades. Príncipe recém-entronado, Creonte tem por objetivo fixar dois princípios: começar uma nova dinastia despoluída, afastada da maldição que cercava os incestuosos Lambácidas e dar uma punição exemplar aos que viessem de alguma forma desafiar a sua autoridade, pela desobediência ou pela rebeldia. Como ele fez ao emparedar Antígona, ou ainda deixando Polinices insepulto. Gradativamente, por mostrar-se obcecado em afirmar-se como tirano, todos dele se afastam. O filho, o mago Tirésias e, por fim, a própria esposa. Na verdade, pode-se considerar a peça como uma notável exposição sobre a solidão do poder e o gigantesco preço que um estadista é obrigado, por vezes, a pagar por ter tomado uma decisão que ele considerava acertada. Albin Lesky (La tragedia griega, Barcelona, 1970), entrementes, não acredita num embate entre o Estado e a Família, mas que tudo deriva da maldade e mesmo crueldade de Creonte, que age como se fosse um possesso, quase se deliciando com o poder que dispõe de fazer executar a sua vontade inquestionável. É de se considerar também que ele descarregou sobre Antígona uma vingança que ele não pôde executar sobre os filhos de Édipo, que, naquela altura já estavam mortos, pois, afinal, foi a luta fratricida que fez com que Creonte perdesse um dos seus filhos, dado em sacrifício para o bem da cidade. Para a dupla J-P.Vernant & Vidal-Naquet (Mito e Tragédia na Grécia Antiga, S.Paulo, 1977) a grande tragédia de Sófocles não trata só da maldade de Creonte ou da coragem de Antígona, nem mesmo um conflito que opõe o espírito político do rei, oposto ao espirito religioso da filha de Édipo, mas sim um embate, insolúvel, entre "dois tipos de religiosidade", de "dois domínios da vida religiosa":
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