quinta-feira, 4 de março de 2010

A tragédia do caráter

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Sófocles
Enquanto seu mestre Ésquilo, a quem Sófocles sucedeu no gosto do público ateniense, apresentava invariavelmente os seus heróis submetidos às leis da fatalidade, esboçadas por deuses implacáveis, esse procurou traçar um cenário diferente para a ação dos seus personagens. Se bem que os deuses continuassem os mesmos, o destino dos heróis de Sófocles deriva bem mais do caráter deles do que do determinismo fatalista. O Agon, o embate, o conflito, que alimenta o seu drama, é antes de tudo um choque de personalidades fortes, claramente definidas e assumidas em quanto tal. Em suma, há sim um poder do além intervindo sistematicamente, mas isso não retira o espaço da liberdade de ação do homem. Interessa observar que destaca-se entre essas personagens fortes, fortíssima até, a jovem filha de Édipo, Antígona. Ela, mesmo sendo mulher, considerada inferior para a maioria dos gregos de então, incorpora os valores altivos e honrados herdados de uma dinastia aristocrática, a dos Labdácidas, e vai à luta para manter os sagrados princípios da sua casta.

A briga dos herdeiros

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Édipo rei, no seu tempo de fausto
Com o exílio de Édipo, seus dois filhos, Etéocles e Poliníces, ainda que amaldiçoados pelo pai, decidem dividir o poder. Combinam entre si que enquanto um assume o trono o outro responde pelo tesouro de Tebas. Ocorre que, transcorrido um tempo, estando a coroa com Etéocles, esse, possuído pelo daimón, pela praga jogada sobre os Labdácidas, nega-se a dar lugar ao irmão. Polinices, irado e magoado, jurando vingança, retira-se então da cidade natal, indo abrigar-se na corte do rei Adastro de Corinto. Lá, o príncipe tebano usurpado casa-se com a filha de rei e esse então jura auxiliar o genro na recuperação do trono tebano. Para tanto, recruta um grupo de príncipes argivos que juram tomar a cidade ou morrer tentando. Cercado os muros de Tebas, a população começa a padecer dos efeitos do sitio até que devido ao sacrifício da vida de Meniceu, o filho de Creonte e primo-irmão de Etéocles e de Polinices, a sorte se inverte. Os atacantes são abatidos e postos em fuga, mas os dois irmãos não sobrevivem. Etéocles, num rápido duelo com Polinices, o mata, não sem antes também se ver varado pela espada do irmão. Dessa forma encerra-se a linhagem masculina dos Labdácidas, só restando da antiga família dos descendentes de Laio e de Édipo, as duas moças.

O Édipo de Creonte

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Um casal grego
No vazio de poder que se dá, quem legitimamente assume como "o senhor do poder e do trono" em Tebas é Creonte, o cunhado de Édipo e tio de seus filhos e filhas. Indignado com a insurreição de Polinices, que voltou-se contra a sua cidade e contra o restante da sua própria família, rebeldia que, inclusive, ceifou a vida de um dos filhos de Creonte, o novo rei determina um castigo exemplar para o jovem príncipe morto: que não seja dado abrigo ao cadáver dele. Que ele reste insepulto, servindo suas carnes putrefatas "como um objeto horrível à vista, para pasto das aves e dos cães". Dessa forma, a alma de Polinices vagaria danada, sequer com direito à baixar ao Hades, a morada dos mortos (*). Já o outro irmão, Etéocles, que morreu em defesa da cidade, mereceria "todas as honras fúnebres, as quais vão para debaixo da terra, para os heróis defuntos". Ai de quem tentasse não respeitar o édito do rei, pois Creonte determinou "que não haja condescendência a respeito dos que desobedecerem", pois a morte seria a paga.

(*) era crença entre os gregos antigo que a alma dos mortos atravessava uma barca, conduzida por Caronte, um barqueiro mal-humorado, a quem convinha agradar fazendo com que se colocasse uma moeda na boca ou na testa do morto. Chegando às margens da mansão do Hades, onde os mortos se concentravam, havia na sua frente o cão Cérbero, que deixava a alma entrar, mas jamais sair.

A reação de Antígona

Logo que chegam a Tebas, as duas irmãs tomam conhecimento do destino infausto dos irmãos como também do édito de Creonte. Desta vez é Antígona quem se indigna. Não poderiam elas, como as últimas familiares restantes do morto, deixar de cumprir com os obrigatórios ritos consumados. Ismena, porém, acha aquilo temerário. Lembra a Antígona que elas descendem de uma dinastia amaldiçoada, onde todo os antepassados ou próximos tiveram morte horrível (Laio, o avô delas, foi morto pelo próprio filho Édipo, que depois arrancou os próprios olhos; Jocasta, simultaneamente, a mãe e avó delas, matou-se, e seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, foram-se na voragem do fratricídio). Quem sabe seria melhor acatar as determinações do novo rei, o tio delas? Afinal, pondera, elas são mulheres e ninguém iria cobrar-lhes atitudes viris e temerárias, tal como desafiar a autoridade de Creonte. Antígona, porém, desprezou-a. Para ela, a irmã era covarde, incapaz de sensibilizar-se com as responsabilidades da casta nobre, a que por sangue pertenciam. Na calada da noite, contornando as sentinelas que vigiavam o irmão defunto, ela conseguiu prestar-lhe as homenagens, fazendo as libações e jogando um pouco de terra sobre os seus restos.

Quando um mensageiro traz-lhe a notícia do desrespeito às suas ordens, Creonte, tomado de raiva, acreditou, num primeiro momento, que aquilo devia-se a uma manobra de "cidadãos descontes" que "murmuravam e abanavam a cabeça às escondidas, não conservando dóceis, como deviam, o pescoço sob o jugo", teriam assalariado alguém para praticar aquele ato de provocação ao novo governo.

Enfrentando o Tirano
"Ele não tem direito a impedir os meus deveres sagrados."
(Antígona,10)

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Um dama da nobreza grega
Novamente os sentinelas expõem o morto ao sol e, outra vez, Antígona vem-lhe prestar os favores de um velório. Detida, ela é conduzida ao rei. A princesa não se desculpa. Ao contrário, depois de ter iniciado no interrogatório cabisbaixa, lança no rosto de Creonte que nenhuma lei humana ou real poderia detê-la naquele seu ato de obediência aos desígnios bem mais profundos. Aqueles que obrigam um parente a dar sepultura a um dos seus. Possesso, o rei ordena que a emparedem, que a sepultem viva. Da boca de Antígona, tomada por um volúpia orgulhosa, quase suicida, não sai nenhum apelo de comiseração ou perdão.

Tudo indica que Creonte passa a ver na eliminação da filha de Édipo (a sentença também atinge a inocente Ismena) uma maneira de despoluir o reino de Tebas dos derradeiros descendentes incestuosos de Laio, e também evitar que Herão, o seu filho sobrevivente, contraia núpcias com Antígona, sua noiva prometida. O filho, por sua vez, se horroriza com a intransigência do pai. Acusa-o abertamente de tirano ("a cidade não pertence a um homem só"), dizendo-lhe que por toda a cidade o gesto de Antígona, tentando enterrar o irmão, é entendido como um gesto nobre. Mas Creonte o repreende, acusando de obedecer a uma mulher ("caráter vil, às ordens de uma mulher"), Herão, em fúria, decepcionado, atendendo mais aos reclamos de Afrodite, a deusa do amor, do que os deuses familiares, rompe com o pai.

A entrevista com o mago

Tirésias, o celebrado adivinho que era cego, vem alertar Creonte dos malefícios da sua atitude. Tendo escutado o pio das aves e interpretado os agouros (a gordura dos pássaros sacrificados não derretera), concluiu ele que "a cidade sofre por tua culpa"..."por lares santos terem sido profanados". Apelou então ao rei que seguisse a rota da prudência. Este, possesso, acusa o mago de interesseiro ("toda a gentalha dos adivinhos é ávida de dinheiro"), enquanto o solene cego responde-lhe que ele está "completamente infectado" pela falta de juízo. Previu então, ao ir se retirando da audiência, que uma grande desgraça estava prestes a abater-se sobre a casa do rei. Novamente só, assustado com as palavras certeiras do profeta, Creonte entregou-se à dúvidas. Atormentava-o agora à solidão do poder. Ninguém mais o apoiava. Quem sabe se haveria ainda um tempo para a remissão? Chama então os guardas e põe-se a caminho. Quer ir libertar Antígona.

Um dilúvio de desgraças

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O guerreiro com elmo, orgulho da raça
A volta atrás do rei porém deu-se tarde. Chegando ao local, ao ordenar que desemparedassem Antígona, deram com ela morta. A filha de Édito pendia numa corda, enforcara-se. Herão, o noivo, enlouquecido pela dor, desembainhado a espada, tenta estocar o pai, que, assustado, refugia-se do lado de fora do muro caído. O rapaz então, alucinado, volta a ponta da lâmina contra o seu abdômen e deixa-se cair sobre ela, matando-se. Mas o dilúvio da fatalidade que desabou sobre a família do soberano de Tebas não se encerrou ainda ali. Eurídice, a esposa de Creonte, ao saber no palácio da morte do único filho que lhe restara, também decidiu-se se suicidar. O rei, num desespero crescente, toma consciência de que foi sua atitude quem causou aquele infortúnio todo ("Eu fui a causa deles! Fui eu, fui eu, miserável, quem te matou! Reconheço a verdade!"). Meio enlouquecido, pede aos guardas que o carreguem para longe daquelas vistas de gente morta:

"Levai daqui o louco, que, sem querer, filho te matou e também a ti, esposa! Ai, infeliz de mim! Não sei para qual devo olhar, nem onde me apoiarei; porque estão invertidas todas as coisas que podiam servir-me de amparo: sobre a minha cabeça desabou um insuportável destino!."














































































































































Um conflito intradinástico

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Na erudita interpretação que Kathrin Rosenfield (Antígona - de Sófocles a Hölderlin, P.Alegre, 2000) faz da tragédia "Antígona" (a partir da tradução feita pelo poeta alemão Hölderlin, em 1800), traz uma nova contribuição. Não que ela negue as anteriores acima expostas, mas sim que releva sua atenção para um outro aspecto do embate do tio com a sobrinha - a questão, digamos, genético-dinástica. Creonte, para ela, assume não só o papel do estadista tirânico, querendo ver valer a todo custo um édito seu, mesmo que isso implique no sacrifício de alguém da família real, como também o do pai extremando que procura evitar que o seu filho Hemão viesse a se casar com alguém abominado pelos deuses. Sabendo que Antígona era resultado de um casamento incestuoso, ela, contraindo núpcias com Hemão, faria com que o futuro rebento daquela união, o neto de Creonte, fosse também atingido pela praga que cercara a todos os Labdácidas. Por isso, o rei manifestou-se com tanto ardor. Não se tratava só de política, mas de algo mais profundo, que partia do mundo dos instintos, o pavor de ver seu genos (estirpe) também poluído. Os gritos possessos de Creonte eram a voz do sangue ameaçado, não uma fala do trono.

Portanto, o extraordinário drama abarca também uma desavença intradinástica, onde a velha estirpe, representada pelo sangue contaminado de Antígona, luta para salvar sua honra de uma família decadente, enquanto uma nova estirpe, que se imagina ainda não poluída, tenta afirmar-se como sucessora legítima da Casa dos Labdácidas. Ambos seriam pois, faces diferentes de uma exigência genética. Uma inteiramente infectada, outra tentando fugir ao contágio.


Interpretando "Antígona"

É corrente entre os estudiosos das tragédias gregas que elas serviram, antes de ser um entretenimento, como um estímulo a grandes discussões jurídicas, políticas, filosóficas e existenciais da sociedade grega e, porque não dizer, da humanidade. Antígona é, nesse sentido, uma das que mais longamente prestou-se às mais diversas interpretações políticas e literárias. O filósofo Hegel, por exemplo, considerou-a, longe de ser apenas um enfrentamento entre dois teimosos de cabeça quente, como um modelo do choque existente entre os interesses do Estado representado pelo rei Creonte, frente às Leis Não Escritas, a dikê, a ordem natural e os direitos familiares invocados pela princesa tebana.

O crítico H.D.F.Kitto (A Tragédia Grega, Coimbra, 1972), por sua vez, entendeu que, entre as duas fortes personagens que a dominam, ela é a tragédia de Creonte. A filha de Édipo, atormentada pela crescente infelicidade da sua família, talvez estivesse, ao desafiar a lei, em busca de uma morte gloriosa, solene, auto-sacrificando-se no altar da sua raça em extinção. Sobre ele, porém, é que concentraram-se as responsabilidades ("Ó anciãos, todos vós sois como arqueiros que atiram para este homem como sobre um alvo"). Apesar da peça chamar-se "Antígona", é ele, Creonte, quem domina o cenário. É em torno da sua decisão que é tecida toda a rede de infelicidades.

Príncipe recém-entronado, Creonte tem por objetivo fixar dois princípios: começar uma nova dinastia despoluída, afastada da maldição que cercava os incestuosos Lambácidas e dar uma punição exemplar aos que viessem de alguma forma desafiar a sua autoridade, pela desobediência ou pela rebeldia. Como ele fez ao emparedar Antígona, ou ainda deixando Polinices insepulto. Gradativamente, por mostrar-se obcecado em afirmar-se como tirano, todos dele se afastam. O filho, o mago Tirésias e, por fim, a própria esposa. Na verdade, pode-se considerar a peça como uma notável exposição sobre a solidão do poder e o gigantesco preço que um estadista é obrigado, por vezes, a pagar por ter tomado uma decisão que ele considerava acertada.

Albin Lesky (La tragedia griega, Barcelona, 1970), entrementes, não acredita num embate entre o Estado e a Família, mas que tudo deriva da maldade e mesmo crueldade de Creonte, que age como se fosse um possesso, quase se deliciando com o poder que dispõe de fazer executar a sua vontade inquestionável. É de se considerar também que ele descarregou sobre Antígona uma vingança que ele não pôde executar sobre os filhos de Édipo, que, naquela altura já estavam mortos, pois, afinal, foi a luta fratricida que fez com que Creonte perdesse um dos seus filhos, dado em sacrifício para o bem da cidade.

Para a dupla J-P.Vernant & Vidal-Naquet (Mito e Tragédia na Grécia Antiga, S.Paulo, 1977) a grande tragédia de Sófocles não trata só da maldade de Creonte ou da coragem de Antígona, nem mesmo um conflito que opõe o espírito político do rei, oposto ao espirito religioso da filha de Édipo, mas sim um embate, insolúvel, entre "dois tipos de religiosidade", de "dois domínios da vida religiosa":

AntígonaCreonte
Representante da religião familiar, puramente privada, limitada ao círculo estreito dos parentes próximos, ao philoi, centrada no lar familiar e nos mortos, a qual ela deve obrigações impostergáveis, sem possibilidade de transigir. Representante da religião pública onde os deuses da cidades tendem finalmente a confundir-se com os valores supremos do Estado. O magistrado supremo tem o dever de fazer respeitar seu Krátos (governo) e a lei que proclamou.

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